Silêncio profundo no comboio. Este rasga silenciosamente o vento, que mal se ouve passar. Os meus olhos vão-se deixando de ver, cobertos pelas pálpebras cansadas. Um abre e fecha, lento, preguiçoso.
Sinto uma força a puxar-me para trás. Vai aumentando e o meu corpo vai-se encostando à cadeira, pressionando-a para trás. O comboio acabou de entrar num túnel inclinado. Quinze graus, vinte, trinta, cinquenta! E ao mesmo tempo a temperatura aumenta: vinte, trinta, cinquenta, cem!
Os olhos já não se fecham e tornam-se atentos: o túnel escuro torna-se mais visível: avermelha-se de um tom de sangue ardente, rugoso e pingado, a humidade vai diminuindo, o vapor vai-se formando e o ar fica abafado. Duzentos graus.
Os bancos já não são confortáveis: são agora de pedra bicuda, que deixam as costas com buracos de meio centímetro cheios de sangue vivo a baloiçar na carne crua que teve a curiosidade de ver o que se passava. São agora ointenta e nove graus de inclinação, com o comboio sempre a acelerar. Jão não sinto as costas. Felizmente. Senão nem os olhos veriam, pois se iriam fechar, inconscientes.
O resto do interior do comboio tornou-se sombrio também. As janelas manchadas e com vidros quebrados e estaladiços. A velocidade faz com que um bocado da janela ao meu lado se quebre e me salte um bocado para a orelha, que se rasga em dois bocados. O pescoço não se safa. Ainda se rasga uma artéria mais saída quando a ponta do vidro passa pela orelha. O pescoço pinta-se de vermelho negro.
Não há problema! O sangue mistura-se ao vermelho tinto que pinta agora o comboio. Estou quase dentro do ambiente! Mas ainda não completamente. Nos bancos à frente está um corpo de rapariga, negro e carbonizado, maneta. Coitada... Tentou fugir pela janela e quando esmurrou o vidro, os estilhaços entranharam-se de tal forma no seu pulso, que o cortaram, caindo lá para fora, perdido para sempre na linha do Inferno. Desesperada, tentou atirar-se de cabeça, mas uma língua de estrela viva queimou-lhe o corpo de tal forma, que começou por brilhar como uma estrela, acabando por arrefecer e mostrar um corpo seco e quase carvão.
Sou o único que ainda mexe os olhos. Não! Há mais um! Mas a sua cabeça acabou de ser arrancada e veio-me parar ao colo. Dentro de segundos serei o único. Entretanto, observo os olhos que me observam, a pedirem socorro, com uma boca que já não produz som, em formato de agonia. Os olhos reviram-se, o crânio rebenta e os neurónios saltam como se se tratassem de serpentinas, mas mais gordas e rosadas, pingadas de sangue queimado.
Mas quem arrancou a cabeça desta criatura? Ólho para as sombras e vejo uma camada mais escura. Está lá algo. Dois pontos de total escuridão destacam-se ainda mais. Movem-se e aproximam-se de mim e apercebo-me que são olhos. Olhos... Cheios de ódio que se focam em mim. Uma alma penada, que sofre por dentro mas obedece a algo superior. Aproximam-se e afastam-se. Não me fazem nada. Porquê? Não compreendo...
O comboio começa a abrandar e as costas sentem finalmente a dor. Em parte vermelhas, em parte rosadas, em parte negras. O comboio permanece parado. Levanto-me e procuro uma porta por onde possa sair deste inferno. As janelas estão negras e não consigo ver onde estou. Uma porta trancada. Duas. Outra. Que inferno! Não consigo sair!
Finalmente uma porta que dá um estalido! Finalmente verei a luz do dia! Finalmente...
Areia vermelha por baixo dos meus pés... Um rio de lava que faz um semi-círculo em torno da... estação... Uma placa feita de ossos humanos com bocados de carne a arder formam uma palavra... INFERNO. Cheguei... Cheguei ao verdadeiro Inferno!
1 comentário:
isto é mesmo aterrorizante, chiça.Fazem favor de se portarem bem para não irem parar ao inferno.É pior do que eu pensava
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