Tornara-me no mundo em que estou. Pintou-me de
vermelho, da tinta que jurrou dos seus sacrifícios. Desde que cá cheguei que
tenho sentido ausência de alguns sentimentos. Sinto-me bem por aqui. É uma
estranha sensação.
Oiço uma vibração ao longe. Finalmente algum
indício de algo que não seja deserto. Tenho de aproveitar a oportunidade.
Ergo-me. Não olho para os corpos. Não sinto
qualquer necessidade de o fazer. Sigo as vibrações. Apercebo-me de que os meus
pés estão como novos. Fantástico! Assim posso caminhar mais depressa e sair
finalmente deste deserto aborrecido! Ora cá vou.
O som sumira e guio-me agora pela memória com que fiquei.
Mas nunca de fiar totalmente nela. É tão frágil e facilmente se atrofia. Tudo
bem. A algum lado hei-de chegar. Nem que seja ao mesmo sítio.
Passaram cerca de cinco minutos e não ouvi nada
mais. Apenas o som do queimar da pele. Está muito mais calor. Faz-me lembrar
quando me queimei na fornalha, na estranha estação. Quase tão quente como isso.
Consigo ver a carne a borbulhar, a querer separar-se. Já se abriu uma ou duas
fendas e se continuar assim serei um bom prato para algum canibal faminto por
uma boa carne assada. Boa não diria, mas certamente assada, sim...
Novamente oiço o que tinha ouvido previamente!
Estou exactamente no local! Os meus ouvidos vibram. Tão mais nítido. O mundo
grita. O mundo grita por algo e não percebo o que diz. Mas é um grito de dor.
E neste momento sou encurralado por quatro paredes
de areia que se fecham sobre mim. Sinto-me afundar. Areias movediças? Não
pensei que houvesse disso por aqui... Não, estou a cair como num elevador
antigo, a uma velocidade tão diminuta que compensa mais ir de escadas. A areia
que está por baixo de mim cai também, ao mesmo ritmo. Eu diria que estou
realmente num elevador, ainda que não tenha qualquer sistema mecânico.
Não faço ideia de onde esteja mas sinto-me cair no
nada, no infinito. Uma pequena chama aparece-me à frente e permite-me ver que
estou numa caixa. Só consigo ficar sentado. E assim fico, a observar aquela
fonte de luz. Vejo-a mexer-se, como que se girando e... Estava realmente a
girar, pois a certo instante vejo-lhe uma espécie de olhos... Fechados...
Abertos. Observam-me com um olhar radioactivo.
Vejo então sairem pequenos vultos que enchem a
minha caixa, rodeando-me. Não há mais espaço. Começam a soltar gritos
completamente loucos, potentes. Gritam de novo algo que não consigo perceber.
Será alguma língua estranha? Ou a pronúncia? Talvez nem estejam a dizer nada e
seja apenas barulho...
Entre este pensamento e o meu movimento de pôr as
mãos aos ouvidos, as paredes em torno de mim ficam em chamas. Não, não são
chamas. É certamente algo bem mais quente, porque a areia de que eram feitas
começa a fundir e vejo-me num tetraedro de vidro.
Lá fora... Bem... Lá fora está negro. Já não há
vermelho. Aliás, não há qualquer cor. Escuridão completa. Existe apenas o
brilhar da pequena chama, que continua na minha caixinha, agora de olhos
fechados. Será o Universo? Não vejo estrelas...